sexta-feira, 21 de maio de 2010

QUARTOS CRESCENTES




À lenda de Ann Radcliffe,
aos poetas, romancistas- escritores que trabalham a palavra enquanto os outros dormem.

Nunca entenderei as frases murmuradas por eles. Cobrem a boca com a mão quando falam. Nunca entenderei porque cessam a música e a gritaria quando espreito do quarto. Havia um tempo que choravam todas as noites e corriam pelos corredores. Conheço todos. Dei-lhes o destino que mereciam. Muitos não aceitam e arrastam a ponta da corda que lhes amarra os pulsos, rasgam a mordaça dos dentes. Aos poucos, as atitudes tornam-se ingênuas e repetitivas: alguns escondem-se no armário das louças. Eles insistem em mutilar os corpos, escondem-se aos pedaços. Nunca sentenciei nenhum à morte. Os atos seguidos um após o outro deram -lhes a natureza cruel do destino. Às vezes, recomeçam o mesmo Ato, como se entrássemos num teatro e a cena se repetisse infinitamente.

_ Senhora Condessa, o chá está pronto!

Ouço os passos no andar de baixo e aguço o ouvido na porta. Os verbos se misturam numa Babel sonora e ruidosa. Não posso entender o que querem. Sei que olham insistentemente para o quarto, na parte de cima da casa. Procuram sempre. Tropeçam quando tentam invadir os degraus. Abismos de serpentes e rios de lodos os arrastam de volta ao degrau de baixo. Se eu dormir eles poderão subir. Não posso dormir nunca. Como dar-lhes de presente  abismos e rios escuros? É uma guerra constante. Sempre troco a xícara de chá que o criado deixa sobre a escrivaninha. William bebe a xícara que seria minha e dorme facilmente. Certifico-me então que a receita do médico está no chá. Não fazem por mal, querem livrar-me de maneira errada, mas eu sou minha única defesa.

Estou cansada e o pensamento se estreita cada vez mais. Sinto a  coroa de espinhos sobre a fronte, sinto o risco do líquido que desce no canto da face. Se os outros chegassem tudo seria diferente. Mudaram-se para longe, além dos mares e nuvens.  Riem e cantam tão alto que nunca olham para baixo, nunca ouvem o que grito. Dei-lhes a felicidade de presente, a vivência de um amor merecido.
Há um terceiro andar sobre a casa. As paredes são de vidros e , às vezes, sei que eles, os que cantam, estão lá no terceiro andar. Tão perto, mas fecharam hermeticamente as portas. O salão de cristal em que se encontram pesa sobre o forro do quarto. Há uma ferramenta comprida na despensa , quando o dia amanhecer a trarei para o quarto e tentarei chegar ao salão de vidro pelo teto sobre a cama. À noite é impossível descer e chegar ao pequeno quarto. Nunca sei aonde eles, os que choram, se escondem. Quando cochilo ouço os passos que vencem os degraus , beirando a porta. Sento-me assustada sobre a cama. Penso e dou vida a um exército de dragões e o fogo os devolve ao salão da casa.
Por que o dia nunca amanhece? O relógio sobre a mesa insiste em dar voltas em torno das três horas. Preciso ir ao quarto da despensa. Há vozes sobre o forro do teto do quarto, o que diz que os que amam e cantam estão reunidos lá. Só eles podem salvar-me de vez. Como descer até o subsolo da cozinha? O guarda-chuva de William está no canto do quarto. Seria possível destruir o forro do teto com a ponta dele? Se eu enrolar o lençol na ponta do guarda-chuva o ruído será abafado.
Não me lembro claramente o que aconteceu após a decisão de usar a ponta do guarda-chuva. Lembro-me apenas de um cansaço ofegante e que apoiei o peso do corpo sobre os pulsos e atingi o andar de cima. Lembro-me de ver  William dormindo de lado e o lençol cobrindo parte dele. Lembro-me, ainda que pude ver lá do alto a porta do quarto sendo empurrada, e dezenas deles subindo sobre a cama. Olharam o corpo deitado com indiferença. Pela segurança de quem dormia imaginei um rio de água e limo dividindo o quarto.

Antes da água atingí-los, olham para o alto. A claridade  e a música suave chamam minha atenção. Uma moça de sorriso agradável estende-me a mão. O rapaz que atravessou oceanos e tormentas para encontrá-la está ao seu lado.





L.A
Ann Radcliffe nasceu Ann Ward no ano de 1764 em Londres. Casada com o jornalista William Radcliffe abriu escola na literatura gótica. Sua literatura é feita de uma linguagem simbólica e visual, próxima à poesia. Suas heroínas sofrem, apenas, para dar fio à trama. Se um escritor gótico iniciasse o capítulo de uma novela qualquer descrevia um velho castelo, uma tempestade de raios e trovões e um estranho vulto que passa entre as árvores. Ann falaria de uma noite de lua, do reflexo da coruja na grama úmida e o vulto de um jovem amante e sua capa escura. Por mais que o amor sofra, Ann dá a ele um final feliz.
Atribui-se à escritora o hábito de ingerir comidas pesadas à noite para ter pesadelos e inspirar-se para escrita. O lado sombrio da escritora vem justificado por duas razões: Era moda na Inglaterra este tipo de literatura e cada um exterioriza o que tem dentro de si. Após uma infância solitária entre adultos a moça afundava-se em personagens imaginários para suportar a imensidão da casa em que morava com os tios. Essa mistura de nostalgia e flor dá-nos a literatura admirável da Senhora Radcliffe. A versão oficial de como deixou este mundo, fragmenta-se. Dizem que enlouqueceu perseguida por seus personagens, caiu montanha abaixo numa de suas viagens pelo norte da Europa, ou morreu como a maioria das pessoas da época: de doença dos pulmões. Quem sabe, um pouco de tudo.

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