O que nos resta agora, atravessadas todas as manhãs de nossa infância, com certeza é o orgulho de termos pertencido àquela família, Afinal, ele era o único médico a quilômetros dali e éramos seus. Nas manhãs de domingo enfileirávamos em direção à igreja, a pé, em jejum, obedientes e limpos. Sempre.
Nós o seguíamos a curta distância, minha mãe em solidariedade aos meus passos curtos dava-me a mão. À frente ia um homem que buscava o sentido da vida, não era de grande estatura, os olhos claros escondiam-se sob as lentes grossas. Anos mais tarde, na escola, descobri muitos meninos com o seu nome. Ele explicava, às refeições, que as mães admiravam a sonoridade do nome. O Dr. Bernardo Benson era um ideal de futuro. Acreditava na verdade acima de tudo e no respeito aos homens. Os habitantes do Vale do Rio Verde confiavam-lhe o corpo e às vezes a alma. Algumas consultas eram dadas nos degraus da escadaria da Igreja, sob chapéus e sombrinhas. Era comum sermos acordados de madrugadas, sob as estrelas ou chuva. O sobrado amarelo entre a Rua do Mercado e a Casa de Pães era de quase uso público. A casa do Dr. Benson passou com o tempo a ser chamada a Casa do Bem.
Foi quando naquela manhã ele nos trouxe o Jipe. Parou ali na entrada da casa e a desordem do dia estava formada. Dali em diante, disputávamos quem de nós acompanharia o médico nas visitas domiciliares. O vento no nariz, no subir e descer das ruas de ladeira, era nossa secreta alegria.
Até que choveu na linda claridade do Vale. Passou a ser rotina o Jipe, tal qual menina birrenta, cruzar os braços na subida da matriz.
− Não vou! não vou! não vou! - engasgava. Bem ali? Nós que adorávamos ser apontados chegando juntos à missa. As birras continuaram: Na porta da escola, nas fazendas distantes, nas claras manhãs de sol e ainda: era inútil acordá-lo em madrugadas de chuva.
Voltamos a fazer a pé o trajeto à Igreja. Eu olhava para trás, na garagem, achava grande e injusto seu orgulho pagão, mas não conseguia odiar quem me dera tanto prazer. Até que meu pai nos comunicou solenemente que iria vendê-lo.
Vieram os interessados.
Eu cruzava a sala em direção à cozinha. Lá perto da janela estava o padeiro. Ele falava e sorria ao mesmo tempo, dizia não ter medo de nada. Foi quando ouvi:
− Não se preocupe, esse Jipe é espetacular! Nunca apresentou problema de motor, nunca me deixou na mão, máquina como esta o senhor não encontra por aí.
Criou-se ali uma linha turva entre o padeiro, o médico e eu. Eu que ainda tinha fresco sob a língua o gosto das doses diárias de respeito, solidariedade e honestidade.
− Pai, como você pode dizer isso?
Não sei se era ainda o meu grito ou de minha mãe:
− Paula Benson, vá já prá cozinha!
Vieram os cascudos, muitos. Muito mais dolorido foi entender a razão deles. Meu nome nunca soara tão grave e feio, tão árido. É bem verdade que eu deveria me chamar Magna Suene, por sugestão de uma tia, mas graças ao atraso do correio o nome só pôde ser dado à boneca que acompanhara a carta. Acho que até ele soaria mais brando naquele momento.
Minha mãe era uma mulher simpática, destas que não se esforçam em ser, pois o sorriso se abre sincero sobre o rosto limpo. Fazia doces e ensinava o ofício de construí-los na varanda da casa. No arrastar das tardes eu assistia as aulas só para ouvir suas explicações pausadas e observar como prendia os dedos na ponta do avental sobre a saia cumprida. Dizia sempre:
− Aqui estão todos os ingredientes. O segredo é misturá-los bem e na ordem certa.
Aos poucos fui assimilando a sabedoria materna. Os ingredientes enfileirados sobre a mesa, tal qual receita de bolo, misturar na ordem e na quantidade certa, sem ir além do sal e do mel. Às vezes rápido, por outras sem pressa.
Do livro Os Anjos de Prata (Antologia de contos e crónicas) - ALL PRINT Editora, 2007, São Paulo, Brasil, pp. 63-64.
Luisa Ataíde