domingo, 29 de abril de 2012

RECEITA DE BOLO







O     que nos   resta agora, atravessadas todas as manhãs de nossa infância, com certeza   é o orgulho de termos pertencido àquela família, Afinal, ele era o único   médico a quilômetros dali e éramos seus. Nas manhãs de domingo   enfileirávamos em direção à igreja, a pé, em jejum, obedientes e limpos.   Sempre.

Nós o   seguíamos a curta distância, minha mãe em solidariedade aos meus passos   curtos dava-me a mão. À frente ia um homem que buscava o sentido da   vida, não era de grande estatura, os olhos claros escondiam-se sob as   lentes grossas. Anos mais tarde, na escola, descobri muitos meninos com   o seu nome. Ele explicava, às refeições, que as mães admiravam a   sonoridade do nome. O Dr. Bernardo Benson era um ideal de futuro.   Acreditava na verdade acima de tudo e no respeito aos homens. Os   habitantes do Vale do Rio Verde confiavam-lhe o corpo e às vezes a alma.   Algumas consultas eram dadas nos degraus da escadaria da Igreja, sob   chapéus e sombrinhas. Era comum sermos acordados de madrugadas, sob as   estrelas ou chuva. O sobrado amarelo entre a Rua do Mercado e a Casa de   Pães era de quase uso público. A casa do Dr. Benson passou com o tempo a   ser chamada a Casa do Bem.

Foi quando   naquela manhã ele nos trouxe o Jipe. Parou ali na entrada da casa e a   desordem do dia estava formada. Dali em diante, disputávamos quem de nós   acompanharia o médico nas visitas domiciliares. O vento no nariz, no   subir e descer das ruas de ladeira, era nossa secreta alegria.

Até que choveu   na linda claridade do Vale. Passou a ser rotina o Jipe, tal qual menina   birrenta, cruzar os braços na subida da matriz.

− Não vou! não   vou! não vou! - engasgava. Bem ali? Nós que adorávamos ser apontados   chegando juntos à missa. As birras continuaram: Na porta da escola, nas   fazendas distantes, nas claras manhãs de sol e ainda: era inútil   acordá-lo em madrugadas de chuva.

Voltamos a   fazer a pé o trajeto à Igreja. Eu olhava para trás, na garagem, achava   grande e injusto seu orgulho pagão, mas não conseguia odiar quem me dera   tanto prazer. Até que meu pai nos comunicou solenemente que iria   vendê-lo.

Vieram os   interessados.

Eu cruzava a   sala em direção à cozinha. Lá perto da janela estava o padeiro. Ele   falava e sorria ao mesmo tempo, dizia não ter medo de nada. Foi quando   ouvi:

− Não se   preocupe, esse Jipe é espetacular! Nunca apresentou problema de motor,   nunca me deixou na mão, máquina como esta o senhor não encontra por aí.    

Criou-se ali   uma linha turva entre o padeiro, o médico e eu. Eu que ainda tinha   fresco sob a língua o gosto das doses diárias de respeito, solidariedade   e honestidade.

−     Pai, como   você pode dizer isso?

Não sei se era   ainda o meu grito ou de minha mãe:

− Paula   Benson, vá já prá cozinha!

Vieram os   cascudos, muitos. Muito mais dolorido foi entender a razão deles. Meu   nome nunca soara tão grave e feio, tão árido. É bem verdade que eu   deveria me chamar Magna Suene, por sugestão de uma tia, mas graças ao   atraso do correio o nome só pôde ser dado à boneca que acompanhara a   carta. Acho que até ele soaria mais brando naquele momento.

Minha mãe era   uma mulher simpática, destas que não se esforçam em ser, pois o sorriso   se abre sincero sobre o rosto limpo. Fazia doces e ensinava o ofício de   construí-los na varanda da casa. No arrastar das tardes eu assistia as   aulas só para ouvir suas explicações pausadas e observar como prendia os   dedos na ponta do avental sobre a saia cumprida. Dizia sempre:

− Aqui estão   todos os ingredientes. O segredo é misturá-los bem e na ordem certa.

Aos poucos fui   assimilando a sabedoria materna. Os ingredientes enfileirados sobre a   mesa, tal qual receita de bolo, misturar na ordem e na quantidade certa,   sem ir além do sal e do mel. Às vezes rápido, por outras sem pressa.    

Do livro Os Anjos de Prata (Antologia   de contos e crónicas) - ALL PRINT Editora, 2007, São Paulo, Brasil,   pp. 63-64.
    
Luisa  Ataíde
    

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